De acordo com estudo divulgado em 2017 pelo mesmo órgão, o Brasil registrou oito desaparecidos por hora nos últimos dez anos, contabilizando 190 por dia. A situação não mudou muito desde então. Ivanise, angustiada pelo sumiço de Fabiana, é uma das mães que entraram em uma busca solitária por seus filhos na capital, e acabaram encontrando força em outras mulheres que vivem pela mesma causa.
“Eu confesso que achei que não iria suportar. Quando você enterra um filho, a dor é enorme. Quando ele desaparece é muito pior, porque você vive a dor da incerteza de não saber se ele está vivo ou morto”, conta. Em 1996, Ivanise recebeu um convite para contar seu caso em um episódio da novela Explode Coração, da Rede Globo . Foi quando conheceu Vera Lúcia Gonçalves, que passava pela mesma situação.
Após a repercussão da novela e entrevistas a veículos de imprensa, as duas receberam centenas de ligações de outras pessoas que também procuravam seus filhos. Inspiradas pelo movimento Mães da Cinelândia, do Rio de Janeiro, criaram o Coletivo Mães da Sé, que hoje reúne mulheres a cada 15 dias nas escadarias da Praça da Sé, no centro de São Paulo. “Eu sempre vi a praça como grande palco de reivindicação da sociedade civil. Hoje é a Avenida Paulista, mas na época era a Praça da Sé”, conta Ivanise.
A partir do dia 31 de março daquele ano, sempre aos domingos, cerca de cem mães passaram a se reunir no local por duas horas, para um protesto silencioso com fotos e cartazes, como forma de chamar a atenção de autoridades e da sociedade para o alto índice de desaparecimentos no País. A fundadora conta que a manifestação também serve para que pessoas comuns reconheçam alguma das vítimas, o que já aconteceu quatro vezes.
O Coletivo Mães da Sé tem como principal ferramenta as redes sociais, onde são divulgadas fotos das pessoas desaparecidas. De 10 mil cadastradas, 4.952 já foram encontradas. Durante a semana, a organização também oferece atendimento psicológico, assistência social e rodas de conversa às famílias que procuram por entes queridos.
Felipe Damasceno Machado é um dos cadastrados no projeto. Em 3 de novembro de 2008, com 16 anos, foi para a casa de um colega na Vila Natal, na zona sul de São Paulo, e não foi mais visto desde então. “Tem gente que fala que eu sou louca de ficar procurando por ele até hoje. Mas sempre falo: a gente, como mãe, tem esperança. Eu tenho 50% de esperança de achar meu filho vivo e 50% de encontrar ele morto. Eu não peso 1% para nenhum lado, porque essa é a realidade”, desabafa a mãe, Lucineide da Silva Damasceno.
Ela conta que procurou pelo filho em hospitais, delegacias, presídios, mas não teve nenhuma pista. Felipe sempre avisava onde ia, a que horas ia voltar e mantinha ótima relação com os familiares. Algumas suspeitas passam pela sua cabeça. Lucineide desconfia que ele tenha sofrido um acidente e batido a cabeça, pois havia saído de moto. No entanto, um outro acontecimento chama mais a sua atenção.
“No dia que o Felipe desapareceu, uma testemunha viu eu e outros motoqueiros em um posto procurando por ele e parou para ver o que tinha acontecido. Ele falou que viu a polícia abordando um rapaz durante a madrugada, que estava com uma moto ao lado. As características todas batiam com as do Felipe. Ele parou para perguntar se estava tudo bem e os policiais disseram que sim, que era só uma abordagem normal”, relata.
Na época, Lucineide foi até a delegacia, mas os agentes disseram que não haviam abordado ninguém. “Foi aí a minha surpresa, porque se tivessem me dito que teve uma abordagem, mas que não era o Felipe, eu ficaria mais satisfeita. Mas disseram que não houve abordagem nenhuma. Se não era o Felipe, quem era esse rapaz? O que fizeram com o meu filho? Tento montar um quebra-cabeça e não encaixa”, questiona.
A negligência das delegacias
Lucineide foi à delegacia no mesmo dia do desaparecimento do filho, no entanto, os policiais informaram que só seria possível fazer o B.O depois de 24 horas. O advogado Ariel de Castro Alves, especialista em direitos da criança e adolescente e membro do Conselho Estadual de Direitos Humanos de São Paulo, afirma que apesar da atitude ser comum, é criminosa.
“Não existe nenhuma regra legal de que as famílias de crianças, adolescentes ou mesmo de adultos, precisam esperar 24 ou 48 horas para registrar as ocorrências de desaparecimentos. Quando os policiais se negam a realizar os registros imediatamente, isso configura o crime de prevaricação, quando o funcionário público não cumpre com suas funções”, informou.
A falta de atenção da polícia no atendimento aos familiares de pessoas desaparecidas é frequente. Débora Alves Inácio Bispo procurou a delegacia quando seu filho Kaio, de 17 anos, sumiu em 2013 em Itanhaém, no litoral de São Paulo. Ele avisou a mãe que iria a uma festa com um amigo e não foi mais visto.
De acordo com Débora, o amigo de Kaio mora no mesmo local até hoje, mas a polícia nunca foi até o endereço. “Esse rapaz seria uma das chaves para saber se aconteceu algo na festa, talvez fosse um esclarecimento para várias coisas. Tudo que eles têm na delegacia fui eu que levei. Até o endereço do menino eu que levei. Mesmo assim eles não foram até lá”, conta.
A mãe também chegou a ir até a casa do garoto, mas foi avisada de que ele não estava. A investigação já tem quase seis anos e nenhuma pista surgiu. “É aquela coisa: filho de pobre, negro, infelizmente eles dizem que não tem distinção, mas tem sim. Filho de rico a gente vê que rapidinho eles acham, mas os pobres eles ficam enrolando”, argumenta Débora.
A falta de atitude do Estado
Todas as mães ouvidas pela reportagem têm a mesma reclamação: o Estado não faz nada para ajudá-las. Criado há quase 9 anos pela Lei 12.127, e lançado pelo governo federal em 26 de fevereiro de 2010, o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos nunca funcionou adequadamente. Atualmente, o sistema tem só 64 casos cadastrados. Os mais recentes são de 2015.
“É inexplicável que tenhamos no País cadastros de imóveis, de veículos, de telefonia, mas não tenhamos cadastro de pessoas humanas desaparecidas. Certamente as pessoas humanas é que deveriam ser prioridade, conforme a nossa Constituição Federal. Mas os poderes públicos nem sequer cumprem a Constituição Federal”, afirma Castro Alves.
Em São Paulo, um projeto importante para o problema era o Caminho de Volta , desenvolvido na Faculdade de Medicina da USP em parceria com a Secretaria de Segurança Pública, em 2004. A finalidade do programa era auxiliar familiares das vítimas por meio de um banco de dados, que coletava o DNA dos pais e cruzava com o material biológico de toda criança cujo reconhecimento visual fosse difícil ou impossível, com o intuito de confirmar o parentesco.
O projeto informou, porém, que perdeu convênios com órgãos do governo e delegacias de pessoas desaparecidas e hoje não consegue mais fazer esse trabalho. Atualmente, oferece apenas atendimento psicológico às famílias.
O advogado explica que o grande problema é que não existe integração e nem sistema unificado de comunicação entre órgãos públicos e hospitais, albergues, abrigos de crianças, hospitais, IMLs, delegacias , tribunais de Justiça, conselhos tutelares, rodoviárias e aeroportos.
“Tendo sistemas unificados, banco de dados e cadastros que realmente funcionem, a cada situação se pode fazer uma espécie de alerta e divulgar ao máximo a foto e as informações sobre o desaparecimento”, argumenta.
Esse é um dos desafios de Débora na busca por Kaio. Ela afirma que foi a alguns IMLs, mas não há um sistema que reúna as informações de todos eles. Ela diz ainda que sua condição financeira também não permite que ela visite um por um.
“Você chega em um hospital e tem um monte de gente internada sem identificação, mas eles não avisam a delegacia. Teve um pai, no ano passado, que ficou procurando o filho e ele tinha ficado em coma e morrido no hospital sem identificação. O pai só ficou sabendo dois anos depois, é muito cruel. A busca é solitária e cruel”, diz.
Castro Alves afirma ainda que a maioria dos casos no Brasil são impulsionados pelos próprios familiares, pessoas e entidades como as Mães da Sé, Mães em Luta e outras, que acabam fazendo um papel que seria do Estado. Em 90% das situações, não ocorre investigação. “Estamos num mundo globalizado e de comunicação imediata, o que falta é que essa globalização e comunicação sejam utilizadas para garantir os direitos humanos e não só para finalidades comerciais, visando lucro”, completa.
O advogado reitera que são necessárias campanhas públicas para esclarecer os desaparecimentos à população e a existência de programas especializados de atendimentos, cadastramentos e buscas das vítimas. Defende ainda a criação de delegacias especializadas, vinculadas a cada delegacia seccional. “Elas garantiriam um trabalho mais adequado e exclusivo e também atuariam em conjunto com os programas sociais”, justifica.
Além da peregrinação diária em hospitais, delegacias, presídios e instituições, as mães ainda têm que lidar com a saúde mental. Lucineide, que trabalhava em um escritório de advocacia, perdeu o emprego depois que o filho desapareceu e toma remédios controlados para a depressão. Agora, afirma que sua profissão é trabalhar para ajudar outras mães que precisam de uma luz.
Ivanise, por sua vez, alega que o governo, além de não auxiliar na busca, também não tem nenhuma política de suporte às mães. “O Estado deveria cumprir com o seu papel. Quando alguém desaparece, a sensação que temos é que você desapareceu junto.Quantas mães não perderam o emprego na busca pelos seus filhos? Quantas não estão doentes? Todas tem depressão e, se não for tratada, se transforma em coisa pior”, argumenta.
Bolsonaro entra em cena
De acordo com as mães, a situação nunca mudou, independente do governo. Em dezembro de 2009, o ex-deputado e atual prefeito de Ribeirão Preto, Duarte Nogueira (PSDB), apresentou um projeto de lei (6699/09) para a criação da Política Nacional de Busca de Pessoas Desaparecidas.
A proposta reformularia o cadastro nacional, com dados públicos de livre acesso e um banco de DNA. A lei também prevê o desenvolvimento de programas de inteligência e de articulação entre órgãos de segurança pública desde o desaparecimento até a localização da pessoa, sistemas de informação e comunicação entre os órgãos e investimento em pesquisa. Além disso, o governo criaria redes de atendimento psicossocial aos familiares.
O PL foi aprovado pela Câmara em 2017 e pelo Senado em fevereiro de 2019. Sendo assim, chegou às mãos de Jair Bolsonaro. O presidente sancionou a lei no último dia 18, mas vetou o artigo que previa a regulamentação pelo governo em até 90 dias. Ele alega que o prazo imposto pelo Congresso desrespeita o princípio da interdependência e harmonia entre os poderes, previsto na Constituição.
Não foi informada a previsão para que o projeto seja colocado em prática. Enquanto isso, Ivanise, Lucineide, Débora e milhares de mães continuam a ser vítimas da negligência do Estado. “Eu me sinto órfã de tudo. Hoje não tem nem um médico para eu passar quando tenho uma crise. No posto de saúde não tem vaga. O que temos nesse País a nosso favor?”, questiona Lucineide. “Eu luto para que amanhã seja diferente, para que tenhamos mais força. Enquanto o Estado não faz nada, eu já perdi 10 anos da vida do meu filho.”
Fonte: IG