Segunda, 03 Julho 2017

Desaparecimento de pessoas é um problema social grave, porém esquecido nas políticas públicas brasileiras

O desaparecimento de entes queridos causa, provavelmente, a maior dor que pode atingir uma pessoa. Uma dor descrita como maior até que a da morte, porque, além do vazio, não se sabe se a pessoa está sofrendo, se está viva ou não, se irá reaparecer...

Tudo é incógnita, espera e ansiedade. Essa dor, que pode perdurar por um breve período ou até pela vida toda, é um problema social que atinge um número expressivo de famílias em todo o País, porém é esquecido enquanto política pública. Violência urbana, tráfico de seres humanos, conflitos domésticos e transtornos mentais estão entre seus motivos.

No caso de crianças e adolescentes, a maioria dos desaparecimentos está ligada a problemas domésticos, o que os torna mais suscetíveis à influência de terceiros. Mas também há casos em que não há registro de problemas de convívio familiar e nenhuma motivação aparente para fuga.

vazioaUm indício da negligência do governo é a precariedade de dados sobre o assunto. “Não há um banco de dados nacional para que se possa avaliar o tamanho do problema”, declara Eliana Vendramini, promotora de justiça do Ministério Público de São Paulo (MP-SP) e coordenadora do Programa da Localização e Identificação de Desaparecidos (PLID).

O MP-SP estima que, em média, 20 mil pessoas desaparecem no Estado, por ano. Porém, os dados são precários. Levantamento do órgão, a partir de informações da Secretaria de Segurança Pública, apontou que, em 2015, havia 9.701 casos de desaparecimentos não resolvidos. Os dados de 2016 ainda não foram disponibilizados e não há estimativa de quantas pessoas são encontradas mortas.

Dentre os desaparecimentos de 2013 a 2015, há um pico de jovens do sexo masculino entre 15 e 28 anos. As crianças são menor número, porém a localização é mais difícil, tanto pela mudança da feição como pela alienação parental, que consiste na interferência psicológica provocada na criança ou adolescente, por um de seus genitores, contra outro membro da família que também seja responsável pela sua guarda.

Um levantamento feito pela Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (Redesap), em 2008, demonstra que grande parte das famílias em que havia histórico de problemas domésticos não informa que a criança estava passando por conflitos no lar quando comunica o desaparecimento do filho às autoridades.

O Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) da Polícia Civil do Estado de São Paulo indica que, no primeiro bimestre deste ano, 1.545 boletins de ocorrência relativos a desaparecimentos foram registrados e 1.551 casos foram esclarecidos, incluindo casos de anos anteriores. Esses números são similares ao bimestre de anos anteriores.

Precariedade
Quando a família percebe que um familiar desapareceu, procura a delegacia, onde é feito o boletim de ocorrência policial. Em caso de crianças e adolescentes, deve ser aberto inquérito para investigação imediata, conforme determina a Lei 11.259/2005, que complementa o Estatuto da Criança e do Adolescente. Contudo, segundo o MP-SP, a determinação não é cumprida por todas as delegacias. “Há uma discussão de que o adolescente tem controle sobre o próprio desaparecimento. Às vezes, ele não é considerado como vulnerável”, diz Eliana Vendramini.

Em fevereiro de 2010, foi lançado o Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas do Ministério da Justiça (MJ), mas ele nunca funcionou de fato. Em 2013, o MJ, em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, criou o Cadastro Nacional de Crianças e Adolescentes Desaparecidos, que tem cerca de 400 crianças cadastradas. Mas, como a atualização do cadastro é precária, muitas delas podem ter sido encontradas. Como se não bastasse, o portal da Redesap, do Ministério da Justiça, não existe mais.

Mães da Sé

A Associação Brasileira de Busca e Defesa da Criança Desaparecida (ABCD), conhecida como “Mães da Sé”, foi criada em março de 1996 por Ivanise Esperdião, após três meses do desaparecimento de sua filha Fabiana, aos 13 anos de idade.

Logo após o desaparecimento da filha, Ivanise participou das gravações da telenovela Explode Coração, da TV Globo, que abordava o tema de pessoas desaparecidas. Com a repercussão da novela, deu entrevistas a grandes jornais impressos de São Paulo, deixando seu número de telefone disponível para quem estivesse na mesma situação e quisesse conversar com ela. “Meu telefone não parou mais de tocar e pude perceber quantas pessoas viviam a mesma situação que eu. Até então, não conhecia ninguém que havia passado por isso, sentia-me sozinha”, lembra Ivanise.

Durante as gravações da novela, ela conheceu Vera Lúcia, cuja filha também desaparecera, e, juntas, fundaram a Organização Não Governamental (ONG) com o objetivo de ajudar outras famílias na mesma situação.

ecidiram marcar encontros na catedral da Praça da Sé, inspirando-se nas mães que se reuniam na escadaria da Cinelândia, no Rio de Janeiro. Juntaram mais de cem pessoas, e o grupo recebeu da imprensa o nome “Mães da Sé”. “Escolhi a Praça da Sé porque a via como palco de manifestações na época, só depois é que passou a ser a Avenida Paulista”, explica.

As mães e alguns outros familiares se reúnem a cada 15 dias na escadaria da Catedral da Sé, com cartazes contendo fotos de seu ente desaparecido. A associação conta com uma psicóloga e um assistente social para prestar atendimento às famílias, seja no período da ausência do filho, como, eventualmente, após o encontro para a readaptação do convívio. Também é desenvolvido um trabalho de prevenção ao desaparecimento, por meio de cartilhas educativas, feitas em duas linguagens: uma mais lúdica, para crianças, e outra para adolescentes e adultos.

Ivanise conta que, quando uma pessoa é localizada, sente como se fosse “um pedacinho” de sua filha. Ao longo desses 21 anos da instituição, mais de quatro mil pessoas foram encontradas com o auxílio da associação. Porém, 14 mães e três pais ligados à instituição morreram com essa angústia, talvez de doenças desencadeadas pelo sofrimento.

Lidar com a falta de informações de um ente querido pode ocasionar uma série de problemas de saúde, psicológicos e físicos. Ivanise sofre de diabetes, problemas de coluna, já teve três infartos e, também, depressão. Atribui-os à angústia de não ter notícias do que houve com sua filha. “Para o Estado, nossos filhos são invisíveis, é como se eles não existissem”, lamenta.

Cremesp abraça a causa

Após reunião entre a presidente da ONG “Mães da Sé”, Ivanise Esperdião, e o presidente do Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo (Cremesp), Mauro Aranha, o Conselho emitiu a Resolução nº 298, de 29 de novembro de 2016, que regulamenta a responsabilidade dos Diretores Médicos no auxílio à localização da pessoa desaparecida.

A Resolução prevê que os hospitais cumpram um conjunto de procedimentos, que inclui elaboração de ficha de atendimento com a denominação “desconhecido”, com numeração própria e sequencial; dados como nome (se houver), cor dos olhos, cor da pele, idade real ou aparente, sinais particulares, indicação do local onde o paciente foi encontrado e dados de eventual acompanhante.

Além disso, os hospitais devem também fotografar o paciente no momento da chegada e depois do primeiro atendimento; comunicar o Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), da Polícia Civil; solicitar ao Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt o registro de identificação digital; e buscar por mais dados junto a cadastros existentes, como o Sistema de Cadastramento de Usuá­rios do SUS (Cadsus).

As fotos e informações fornecidas ficarão disponíveis no website do Cremesp, como mais um canal para viabilizar a localização dessas pessoas. No fechamento desta edição da Ser Médico, a ferramenta estava prevista para entrar em funcionamento a partir do dia 3 de junho.

Caminho de Volta

O projeto Caminho de Volta é uma iniciativa de docentes da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (Fmusp), criado em 2004, com o objetivo de construir um banco de dados e um banco de DNA dos familiares de crianças desaparecidas, para cruzar com o material biológico do desaparecido, cujo reconhecimento visual seja difícil ou impossível.

O banco de dados é dividido em dois: o banco referência, que armazena material biológico de familiares de menores desaparecidos; e o banco questionável, com o DNA das crianças ou adultos que foram adotados quando crianças e suspeitam que a adoção tenha sido ilegal e que exista uma família biológica que os procuram. O banco armazena material genético de 1.174 famílias de São Paulo.

“Quando começamos a estudar o tema, percebemos que envolvia muitas questões e fomos tentar entender as circunstâncias, entrevistando as famílias”, conta a psicóloga e psicanalista do Caminho de Volta, Claudia Figaro-Garcia. Por isso, o projeto tem outros três eixos complementares para a busca de desaparecidos: suporte psicossocial dentro do DHPP, onde o próprio investigador, após o atendimento, indica à família o serviço; capacitação de profissionais, para envolvidos no sistema de garantia dos direitos da criança e do adolescente; e identificação das causas, para prevenção.

A psicóloga diz que, na segunda fase da infância, a maioria dos desaparecimentos deve-se a fugas reincidentes em mais da metade dos casos atendidos no eixo de apoio psicossocial. Daí a importância do auxílio psicológico, mesmo após o menor ser encontrado.

Colaborou: Janaina Santana

 

Fonte: CREMESP

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