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Crianças escravas: a realidade ultrapassa a ficção
Vivemos na ilusão de que habitamos num país de brandos costumes, onde os índices de criminalidade são preocupantes, mas ainda não parecem tão assustadores como noutras latitudes, onde haverá mais miséria, mas estudos recentes provam que há cada vez mais vítimas e os crimes são cada vez mais brutais.
Todos os dias, a todas as horas há crianças e jovens a serem abusados, explorados, violados e maltratados no nosso país. Custa admitir que tudo isso se passe ao nosso lado, no nosso bairro, na mesma cidade onde moramos, mas é verdade. Ficamos chocados com as notícias que chegam de fora, de lugares mais ou menos remotos, onde a pobreza é extrema, mas os factos narrados por 115 vítimas de tráfico humano, ouvidas por especialistas e investigadores portugueses do NSIS – Network of Strategic and International Studies, revelam uma realidade pavorosa.
A violência com que crianças e jovens são tratados em Portugal, depois de terem sido vendidos e traficados por gente sem escrúpulos, que os mantêm sob ameaças terríveis, os violam e os agridem diariamente, tem que ser conhecida. Não podemos fingir que são acontecimentos que não nos dizem respeito e, muito menos, pretender que neste país não existem redes de tráfico de seres humanos. Existem e são brutalizantes.
Quanto mais novas são as vítimas, mais longo é o período de exploração e sujeição a maus tratos. Maior é o sofrimento a que são expostos e maior é a selvajaria da servidão que lhes é imposta. A esmagadora maioria das vítimas destas mafias é conhecida demasiado tarde, já na idade adulta, depois de uma infância e uma juventude vividas em condições desumanas. As provações por que passaram são uma realidade que ultrapassa toda a ficção e ler os relatos da sua realidade é um exercício difícil de fazer.
O austríaco Joseph Fritzl ficou para sempre conhecido por ser o monstro que manteve a filha em cativeiro durante 24 anos; o pai que violava diariamente a sua própria filha, de quem teve 7 filhos, também eles presos, escondidos e sem verem a luz do dia até ao momento em que tudo se descobriu. O mundo inteiro ficou chocado com a notícia e não era para menos, mas na verdade todos os dias acontecem coisas tão más ou piores que esta. Muitas crianças começam por ser vendidas pelos próprios pais ou pelos tios. Por pessoas em quem confiam e de quem esperam protecção, mas por quem são traídas e maltratadas.
Em Portugal vivem demasiadas crianças e jovens tratados como escravos. Falo de escravidão sexual, mas também de servidão doméstica e dessa espécie de nova escravatura que passa por manter na rua crianças pedintes, em condições infra humanas. Mendigos forçados, alguns deles mutilados ou propositadamente drogados e alcoolizados. Miúdos que são postos em certos pontos da cidade onde aparecem ao colo de mães fingidas ou de mão dada com supostos familiares, para comoverem quem passa. Crianças que nunca viram estas pessoas e são obrigadas a viver realidades tenebrosas, pois aquilo que todos sabemos é que os traficantes humanos não dão momentos de consolo nem colo ou ombro a ninguém. Muito pelo contrário, o que existe é um cúmulo de sevícias e um tratamento de mal em pior, para que nenhuma das vítimas se atreva a denunciar os maltratantes ou a tentar escapar da rede.
Agredir, violentar e violar diariamente uma criança ou jovem que foi apanhado na teia dos traficantes é uma prática comum para exercer pressão e manter o clima de terror. A violência física é sempre acompanhada de violência psíquica e emocional e, por isso, estas crianças são desprovidas de afecto e vivem constantemente sob ameaça. Muitas delas são confrontadas com a possibilidade de serem mortas ou, pior, de serem causadoras da morte dos pais e familiares que ficaram para trás, pois as ameaças estendem-se a toda a família. Estas crianças podem demorar décadas até perceberem que começaram por ser traídas, enganadas pelos próprios pais e familiares e só assim se justificam os longos anos de cativeiro e submissão. Muitos jovens só encontram meios para fugir e recursos internos para resistir à pressão das ameaças quando se tornam adultos e, por isso, muitas vítimas só são conhecidas na idade adulta.
Toda esta realidade ultrapassa a ficção, insisto, e embora nos seja difícil olhar para ela – e a tentação mais comum seja ignorar ou fingir que não nos atinge! – é importante percebermos que está ao nosso alcance contribuir para prevenir novas situações de escravatura. É vital a consciência de que nos dias que correm as potenciais vítimas deixaram de ser apenas as crianças muito pobres, provenientes dos bairros miseráveis de certos países. Hoje em dia os traficantes aliciam crianças e jovens ditos normais, rapazes e raparigas porventura emocionalmente mais vulneraveis que podem ser nossos filhos ou filhos dos nossos vizinhos.
Os traficantes de seres humanos tornaram-se muito sofisticados e actuam de maneiras que confundem por parecerem boas. Criam empatia e estabelecem confiança com as suas vítimas e só atacam quando esses laços estão bem reforçados. Nas redes sociais, por exemplo, qualquer criança ou jovem pode estabelecer uma ligação de suposta amizade com um criminoso, pois os chats e as mil e uma formas como se podem forjar identidades falsas favorecem o crime. Este e outros, note-se, pois os excessos de exposição da vida privada nas redes sociais são um maná para vários tipos de criminosos.
Como podemos fazer para que crianças e jovens fiquem mais seguros e não caiam numa rede de traficantes? Primeiro, tendo consciência de que este crime se estende cada vez mais a pessoas ditas normais. Os relatórios dos organismos e autoridades ligados à Segurança Interna, bem como os documentos produzidos pelo Observatório do Tráfico de Seres Humanos são muito claros nestas matérias a alertam para redes de crime organizado altamente sofisticadas que actuam online.
Ninguém devia expor demasiado a sua vida privada nas redes sociais; nenhuma criança devia usar a internet sem supervisão de um adulto capaz de perceber por onde está a navegar; todos os jovens deviam evitar encontrar-se com estranhos em lugares não públicos (optando, exigindo sempre lugares onde estejam visíveis e haja outras pessoas); qualquer pessoa deve certificar-se de que uma oferta de trabalho muito bem paga, fora do país (especialmente as que parecem boas demais!) é realmente uma oferta segura, procurando obter referências e sabendo exactamente ao que vai, mesmo quando se trata de uma primeira viagem de visita ou entrevista; todos devíamos duvidar de contratos que oferecem muito dinheiro a pessoas com pouca escolaridade e, finalmente, todos temos a obrigação de denunciar casos estranhos que possamos eventualmente conhecer.
Isto, porque muitos casos de escravatura identificados não são conhecidos pelas autoridades. Trata-se de realidades muito escondidas que acabam por ser denunciadas por ONGs, padres, missionários no terreno, médicos e outros profissionais de saúde particularmente atentos a sinais de maus tratos físicos e psicológicos. Fazer prova deste crime é extraordinariamente difícil porque as vítimas vivem num clima permanente de terror, coisa que permite a estas mafias estenderem as suas redes e fortalecerem os seus negócios, prosperando de dia para dia.
Escrevo sobre esta matéria porque no próximo fim de semana haverá em Lisboa um grande encontro sobre estes temas, organizado pela CAVITP- Comissão de Apoio às Vítimas de Tráfico de Pessoas – e faço-o depois de uma longa e eloquente conversa com Cláudia Pedra, directora do NSIS, investigadora e especialista em direitos humanos e migrações. Mestre em estratégia, foi Consultora do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, investigadora para a Ásia e sobre o Tráfico de Pessoas no Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Interessei-me pelo tema quando vi o anúncio deste seminário e tentei chegar à fala com Claúdia Pedra, para saber do que falamos, quando falamos de crianças escravas no nosso país. Cláudia Pedra, que trabalha há mais de 20 anos nestas áreas, vai ter ao seu lado uma outra especialista internacional, Gabriella Bottani, Coordenadora da Rede Talitha Kum, e ambas vão falar de vítimas de discriminação e maus tratos. Acima de tudo vão tentar despertar a consciência geral para um drama real que merece ser denunciado, deixando pistas para actuarmos e também nós sabermos como podemos proteger as crianças e os jovens mais vulneráveis das garras dos traficantes mais sinistros de sempre.
Fonte: OBSERVADOR