Quinta, 29 Setembro 2016

Artigo :O Ministério Público em busca de pessoas desaparecidas: desaparecimentos forçados por omissão do Estado

Em novembro de 2013, o Ministério Público do Estado de São Paulo aderiu ao Programa de Localização e Identificação de Desaparecidos – PLID, nascido como um banco de dados no seio do Ministério Público do Rio de Janeiro, onde já lançado o desafio de congregar informações sobre pessoas desaparecidas, controlar seu fluxo e permitir a atividade-fim da instituição, em busca prioritária por uma verdadeira política pública na temática.

É importante destacar que, ao lado da inarredável existência do banco de dados que é capitaneado pelas Polícias Civis de cada Estado, onde registrados os boletins de ocorrência de desaparecimento, o sistema PLID trouxe a possibilidade de observação de quadros estatísticos em tempo real, por faixa de idade, gênero, naturalidade, nacionalidade, local de ocorrência, local de localização, circunstâncias da localização, motivação e tipo de identificação, permitindo uma visão global do fenômeno social “desaparecimento”, além de buscas efetivamente guiadas.

Os registros são alarmantes: só no ano de 2013, 23.194 pessoas foram dadas como desaparecidas no Estado de São Paulo, e esse número aumentou no ano seguinte. Isso não significa que todas essas vítimas permanecem desaparecidas (argumento comum para minimizar o problema), mas significa, sim, que a maioria desses registros comporta a análise de um tema a solucionar, por via de regra, de grande interesse social, a exemplo do tráfico de pessoas (para os mais variados fins), da violência urbana (especialmente policial) e do tráfico de drogas; bem como do trato dos doentes, sejam mentais, sejam por drogadição ou por alcoolismo. Significa, portanto, que os próprios registros de desaparecimento nos levam a temas de relevo nas políticas públicas, que nunca foram relegados, como é relegado o desaparecimento em si.

A propósito, não é lenda que muitas pessoas desaparecem por muitos anos ou para sempre, a exemplo das 7.501 crianças do Estado de São Paulo ainda por serem localizadas.

É com esse olhar que o PLID/MPSP, ao tentar entender onde poderiam ser encontrados os desaparecidos já falecidos, descobriu uma falha grave no serviço público: pessoas registradas como desaparecidas, então falecidas, tiveram seus corpos enviados para autópsia e, mesmo com identificação, não foram entregues às suas famílias, senão inumadas em terreno público, como indigentes. As famílias não foram sequer avisadas disso. Portanto, elas desapareceram, apareceram e o Estado desapareceu com elas – fato que aqui convencionamos chamar de “redesaparecimento” – neologismo essencial à gravidade dos fatos. O MPSP/PLID contatou famílias que procuravam seus parentes há mais de 14 anos, embora o Estado os tivesse localizado em menos de alguns dias do registro do desaparecimento.

Vale descrever os passos dessa descoberta, como forma de alerta a uma prática massiva de violação de direitos humanos entre nós, que já foi detectada como recorrente aqui e em outros Estados do Brasil, mas que não foi debelada.

Toda vez que desaparece alguém, sobrevém àqueles que procuram, dentre outros tantos sentimentos aterrorizantes, a ideia da morte. Por isso, inicia-se uma verdadeira peregrinação pelos serviços que podem ter registrado o fato, a iniciar por hospitais mais próximos e findar no conhecido Instituto Médico Legal – IML. Essa busca costuma ser frustrada: ora porque não verificamos um protocolo ou um fluxograma comum aos serviços de saúde para atendimento dessas famílias; ora porque as 72 unidades do IML, pelo menos no Estado de São Paulo, não possuem um cadastro fotográfico digital e unificado, o que causa muitas falhas no atendimento. Ainda assim, as famílias precisariam buscar o Serviço de Verificação de Óbito – SVO, mas, como a maciça maioria da população brasileira, desconhecem esse serviço.

Esse ponto merece detença: tanto o IML como o SVO são serviços que realizam a autópsia de cadáveres, exame que se destina a determinar o momento e a causa da morte, para que seja registrado o óbito e inumado o corpo. Contudo, seus trabalhos são divididos da seguinte forma: ao IML cabem as autópsias de corpos de morte violenta, com ou sem identificação, ou de morte natural, sem identificação (justamente porque a ausência de identificação torna a morte suspeita). Ao SVO, por sua vez, cabem as autópsias de corpos de morte natural e necessariamente identificados.

Ambos os serviços estão adstritos aos comandos da Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo: o IML porque órgão Estadual e o SVO, na capital paulista, porque exercendo função delegada pelo Estado, embora sob a administração do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da autarquia USP.

Feitas essas observações, dependendo do motivo aparente do desaparecimento, a busca das famílias pelo eventual corpo do desaparecido, por lógica, deveria passar por um ou outro serviço. A título de exemplo, imagine a hipótese (não rara) de pessoa idosa que sai de casa, com documento pessoal, passa mal no meio do caminho e não mais retorna, falecendo após atendimento hospitalar ou em meio à rua. Nesse caso, seu corpo será entregue para autópsia no SVO (morte natural e pessoa identificada). Doutra forma, imagine que pessoa também idosa saia de casa, com documento pessoal, mas é atropelada, ou atingida violentamente de qualquer outra forma, também falecendo em atendimento hospitalar ou em meio à rua. Nesse caso, o corpo será levado para autópsia no IML (morte violenta e pessoa identificada).

Quanto ao rotineiro desconhecimento da existência (que dirá função) do SVO, reputamos essencial um trabalho de divulgação pelo próprio órgão, o que lhe foi oficialmente pedido há mais de ano.E assim consideramos porque o fato de o SVO autopsiar apenas corpos de morte natural tem uma razão de ser: corpos sem nenhuma lesão podem ser utilizados para estudo e pesquisa, bônus que motiva a mencionada Faculdade de Medicina a suportar o ônus de parte das autópsias da Capital Paulista. Ora, esse bônus só pode ser conferido à instituição que tem certeza – e age nesse sentido – de que o corpo não tem nenhum interessado. Mas é justamente aqui que se encontra o fenômeno do redesaparecimento.

1. O redesaparecimento de pessoas

Ao ter bem clara a diferenciação entre os serviços prestados pelo IML e pelo SVO na capital paulista, o MPSP/PLID requereu-lhes a lista de nomes das pessoas cujos corpos ali foram autopsiados, justamente para verificar se, por algum lapso, alguma delas ainda era procurada por sua família.

Desde logo, causou-nos espécie o fato de a Diretoria Central do IML não ter uma lista unificada, impedindo uma checagem nome a nome.

O SVO, por seu turno, tinha essa lista – até porque só autopsia pessoas identificadas –, mas alegou que não entrava em contato com a família do cadáver e, na ausência de procura voluntária, enviava o corpo para pesquisa ou mandava inumar em terreno público, como se indigente fosse!

Com essa notícia, mesmo sem uma lista nominal, voltamos os olhos para a forma de proceder do IML, que, igualmente, nos informou que nenhuma família de cadáver identificado era procurada antes da inumação pública; embora pudesse fazer parte do seleto grupo de afortunados a localizar o corpo de seu parente naquela peregrinação posto a posto que, só na capital, somam sete unidades.

Diante desse quadro, concluímos que localizaríamos, sim, corpos de pessoas inumadas como que ainda eram procuradas por suas famílias. Desconfiávamos, contudo, da expressividade desse número, dado que IML e SVO lembravam que, mais dia menos dia, em função de boletim de ocorrência, consequente natural da apuração de uma morte violenta ou providenciado após morte natural (chamado boletim de verificação de óbito), a família ficaria sabendo que seu parente estava morto.

Ora, não fosse a tragédia que seria descoberta logo a seguir, o só fato de mandar inumar em terreno público, como se indigente fosse, corpos de pessoas cuja família está oficialmente à procura é ilegal e inconstitucional. Não é demais reiterar aqui que cadáver é bem particular, da família, pós-exercício de uma personalidade, direito mais que assegurado no Código Civil, e elevado no Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana, a destacar:

“Art. 11. Com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”.

“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta, ou colateral até o quarto grau” (Código Civil – grifo nosso).

Sendo assim, o serviço público não pode dar destinação pública a coisa privada, presumindo-a não reclamada. Não pode, aliás, contar com o sucesso de outro serviço público, com o “mais dia menos dia”, porque o mal do desaparecimento é vivido a cada segundo.

Até porque, procurando saber se os mencionados boletins de ocorrência punham fim à busca das famílias, o MPSP/PLID descobriu que a Polícia Civil, de posse de boletins de ocorrência de desaparecimento e morte em nome da mesma pessoa, simplesmente não os conjugava.

Os fatos falam por si sós:

João Rocha, então com 72 anos e episódios de esclerose, desapareceu em 15.01.2000, após sair de casa. Sua família providenciou boletim de ocorrência de desaparecimento. Ocorre que, em 26.03.2000, João veio a óbito, após meses de internação em um hospital público. O corpo, cuja qualificação se conhecia, foi periciado pelo Serviço de Verificação de Óbito da Capital, que não procurou saber se havia familiar à procura e mandou inumar como indigente. Já a delegacia especializada tinha o Boletim de Ocorrência de Desaparecimento 272/2000 – 64.º Distrito Policial e nunca, em mais de 14 anos, cruzou os dados desse com o Boletim de Ocorrência de Verificação de Óbito 1420/2000 – 32.º Distrito Policial, então providenciado em 27.03.2000. O filho de João foi avisado da sua localização pelo PLID/MPSP em maio de 2015.

Eulálio de Oliveira, então com 67 anos e sem qualquer problema de saúde, desapareceu em 25.05.2009, após sair de casa para ir à Igreja. Sua família providenciou boletim de ocorrência de desaparecimento. Ocorre que, em 24.06.2009, Eulálio veio a óbito, após 29 dias de internação em hospital público. O corpo, cuja qualificação se conhecia, foi periciado pelo Serviço de Verificação de Óbito da Capital – SVOC, que não procurou saber se havia familiar à procura e mandou inumar como indigente. Já a delegacia especializada tinha o Boletim de Desaparecimento 333/2009 – 5.º Distrito Policial de São Carlos e nunca, em mais de 5 anos, cruzou os dados desse com o Boletim de Verificação de Óbito 4218/2009 – 13.º Distrito Policial de Casa Verde, então providenciado em 24.06.2009. O filho de Eulálio foi avisado da sua localização, pelo PLID/MPSP, em maio de 2015.

Dimas Ferreira Campos Júnior, então com 42 anos, desapareceu em 03.07.2015, após sair de casa para ir a uma lan house. Sua família providenciou boletim de ocorrência de desaparecimento. Ocorre que, no mesmo dia 03.07.2015, Dimas veio a óbito, após infarto em via pública. O corpo, cuja qualificação não se conhecia, foi periciado pelo Instituto Médico Legal – IML, que, em quatro dias, obteve sua identificação completa, após exame das digitais junto ao Instituto de Identificação – IIRGD. Mesmo assim, o IML não procurou saber se havia familiar à procura e mandou inumar como indigente. Já a delegacia especializada tinha o Boletim de Ocorrência de Desaparecimento 347/2015 – 4.ª Delegacia Especializada e o Boletim de Ocorrência de Morte 4997/2015 – 26.º Distrito Policial, mas não cruzou os dados. Os pais de Dimas foram avisados da sua localização, pelo PLID/MPSP, mais de um mês depois.

Vê-se, pois, que estas pessoas, como tantas outras, desapareceram, apareceram e o Estado desapareceu com elas. E desapareceu por desrespeitar os proprietários dos corpos, nos serviços de autópsia, e deixar de gerenciar dados, na Polícia Civil. O mais incrível é que todos esses serviços, além de estarem no mesmo Estado, estão dentro da mesma Secretaria de Estado, e não trabalham em rede, base da política pública moderna, que se pretende eficaz.

“Do ponto de vista neoliberal, as redes têm valor estratégico, sobretudo porque seu modelo de organização possibilita identificar os constrangimentos do contexto atual, facilitando o compartilhamento de recursos, práticas e saberes entre as instituições, de maneira a maximizar a efetividade de suas ações e alcançar a eficácia e a eficiência das ações”.

É importante consignar que estes três casos são exemplos de várias outras tantas famílias já identificadas e informadas pelo MPSP/PLID, o qual, aliás, contando com a gravidade da descoberta e a possibilidade de falha reproduzida por anos de dificuldades na gestão da segurança pública, especialmente pós-ditadura, avisou as autoridades competentes – Diretorias do IML e do SVO, Polícia Civil Especializada e Secretaria de Segurança Pública – para que sanassem imediatamente o erro, a iniciar pelo simples ato do diálogo interno.Contudo, até hoje, mais de um ano depois, nada foi feito. É incrível, mas o inquérito civil instaurado na promotoria de direitos humanos na capital – inclusão social documenta a certeza do erro do passado e a vontade de perpetuá-lo a partir de maio de 2014, quando formalmente avisados os órgãos protagonistas.

Aliás, temos o dever de marcar na história que o MPSP/PLID só tem certeza de todos os nomes das pessoas cujos cadáveres estão sendo levados à inumação sem consulta familiar por apoio incondicional do Serviço Funerário Municipal, que, com muito desforço pessoal interno, publica em seu site,[8] toda sexta-feira, a lista nominal atualizada, certo de que o interesse público, nesse caso, sobrepõe-se ao privado. Também é desse serviço o mérito de ter levado algumas famílias, na peregrinação em busca de seus familiares desaparecidos, a chegarem a uma rápida resposta pelo mesmo site.

A pergunta que fica é: por que um simples ato de informação pública, especialmente em tempos de tecnologia, tal qual propôs o Serviço Funerário Municipal, não foi conferido pelos protagonistas IML e SVO, ainda que não tivessem conseguido se compor pela via interna (o que é inaceitável)?

2. O dano moral às famílias

Embora a gravidade dos fatos seja evidente, como, não raro, deixamos de nos colocar na dor do outro (ainda que seja para evitar a própria dor), julgamos importante transcrever as palavras de familiares que ficaram anos à mercê do redesaparecimento protagonizado pelo poder público; vivendo o “abalo da parte mais sensível de seu indivíduo, o seu espírito”:

Cláudio Rocha, filho de João Rocha

“Pensei: agora tenho que ver onde ele está. Pelo menos descanso. Quatorze anos sem informação nenhuma”. Foi na necrópole da zona norte que o técnico em telecomunicação viu o nome de João em um grande livro com os registros de todos os indigentes enterrados em 2000. Respirou profundamente. Com a indicação da cova, pediu ajuda a três funcionários. Não havia estacas com números nem nada que se assemelhasse a um túmulo. Por todos os lados, apenas mato, carpido nos últimos dias. “Pelo tempo que passou, já tem outro enterrado em cima dele”, alertou um funcionário, que teve de contar as fileiras para achar o número 510. “Dá até um arrepio. É o fim de uma busca. Acabou. Acabou”, disse Cláudio, pausadamente. Depois, marcou a vala com um bloco de concreto que encontrou a alguns passos dali, para o caso de voltar. “Eu sonhei várias vezes que encontrava meu pai. Encontrava com vida, ele conversava comigo e tudo. Mas que é um alívio, é”, desabafou.

Ademilson de Oliveira, filho de Eulálio de Oliveira

“Acho que nossos pedidos entravam por um ouvido e saíam pelo outro. Nunca investigaram nada (...) Descobriram algo ‘recente’. Existia um boletim de ocorrência da mesma polícia civil sobre a morte de meu pai em 24 de junho de 2009. Menos de um mês após comunicarmos aos policiais sobre o desaparecimento. Isso, para mim, é o maior desrespeito que poderiam fazer com um ser humano. Como a família não reclamou? Como?”.[11]

Deise Ferreira, Irmã de Dimas Ferreira Campos Júnior

“A gente ficou sem chão. Se tudo tivesse sido diferente, desde a hora que encontraram ele, a gente não estava passando por isso. Estávamos sofrendo, mas não da maneira que estamos sofrendo agora. Se as pessoas fossem um pouquinho mais humanas, se as pessoas pensassem que, atrás daquele corpo, que não tem mais vida, existem famílias, existe um pai, uma mãe, existem irmãos, seria diferente”.

Irmão de Dimas Ferreira Campos Júnior

“Quantas famílias devem estar procurando seu filho e sua filha, achando que está desaparecido ainda, e pode estar no mesmo caso, enterrado já?... Agora precisamos, pelo menos, deixar de uma forma apresentável, para que meu pai e minha mãe venham aqui”.[12]

O que nos permite ter clareza de um dano moral, “que é a privação ou diminuição daqueles bens que têm um valor precípuo na vida do homem, como a paz, a tranquilidade de espírito, a integridade individual, a honra e os demais sagrados afetos, molestando a parte afetiva do patrimônio moral (dor, tristeza, saudade, etc.)”,é exatamente essa expressão viva do sofrimento, que tenta expor-se em palavras, rompendo a clausura íntima e manifestando-se no mundo fático, para obter amparo no mundo jurídico.

A própria dor do desaparecimento “é quase uma interdição das manifestações de felicidade, é aflição e sofrimento diários”.[14] O encontro, por sua vez, ainda que com a morte, “é experimentar uma situação de conforto”. Contudo, casos como o presente perpetuam na vítima a dor de ter sido desrespeitada no seu maior momento de dor. Pior, nem mesmo a resposta àquela dúvida dolorosa lhe permitirá o luto adequado.

Do ponto de vista legal, a constituição cidadã não mais deixou dúvidas quando ao direto à reparação do dano moral, destacando, inclusive, obrigação do Estado nesse sentido:

“Art. 5.º (...) X – são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação”.

“Art. 37 (...) § 6.º As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.

 No presente caso, identifica-se que a prática do ilícito se deu pela forma omissiva, ao deixar de ser chamado o proprietário do corpo ali custodiado e ao deixar de ser utilizado o banco de dados próprio para tanto, e comissiva, ao ser dada destinação ilegal ao mesmo corpo. Quanto às omissões,

“é necessário estabelecer a distinção entre estar o Estado obrigado a praticar uma ação, em razão de específico dever de agir, ou ter apenas o dever de evitar o resultado. Caso esteja obrigado a agir, haverá omissão específica e a responsabilidade será objetiva; será suficiente para a responsabilização do Estado a demonstração de que o dano ocorreu de sua omissão”.

Ainda faz parte desse dano a insegurança trazida pela inércia administrativa com os diversos deveres públicos relacionados ao desaparecimento, pois não são patentes os reais interesses por trás desse comportamento ilegal.

Nada justifica o destino forçado desses corpos, especialmente após serem oficialmente informados os protagonistas das omissões e em detrimento dos direitos fundamentais imediatamente afetos à vida das famílias, à personalidade que foi cada cadáver e ao direito de informação de ambos.

Neste artigo, cabe apenas lembrar que a inconstitucional dedução/presunção de que corpos são “não reclamados”, sem o mínimo de informação familiar, tem uma consequência pouco conhecida da população: a utilização dos corpos para estudo ou pesquisa. Sobre isso, o MPSP/PLID fez análise específica, que será objeto de outro colóquio.

3. A legislação internacional e o desaparecimento de pessoas

Diante das graves violações de direitos vivenciadas pela humanidade durante a II Guerra Mundial, foi necessário transpor as fronteiras dos Estados e trazer ao direito posto a obviedade da necessidade do ser humano ser tratado como sujeito de direitos, e nunca como objeto, em razão do Princípio da Dignidade da Pessoa Humana, cuja análise acurada vale repisar:

“como um valor que atrai a realização dos direitos fundamentais do homem, em todas as suas dimensões, e, como a democracia é o único regime político capaz de propiciar a efetividade desses direitos, o que significa dignificar o homem, é ela que se revela como o seu valor supremo, o valor que a dimensiona e humaniza”.

Nesse período da história mundial foram realizados diversos encontros internacionais a fim de que o tratamento indigno dado a qualquer pessoa humana não voltasse a assombrar a paz mundial, especialmente sob o argumento de “país inimigo”, o que resultou consignado na IV Convenção de Genebra, em 1949. Ainda assim, em 1977, a Conferência Diplomática sobre a Reafirmação e o Desenvolvimento do Direito Internacional Humanitário, aplicável aos conflitos armados, adicionou outros dois Protocolos, ratificados pelo Brasil apenas em 25 de junho de 1993, por meio do Decreto Federal 849/1993, normas, portanto, de caráter supralegal e de aplicação imediata, por se tratarem de direitos e garantias individuais (art. 5.º, § 1.º, da CF).

Dentre outros direitos e garantias presentes nos Protocolos I e II referenciados, assegurou-se que as partes envolvidas em conflitos têm o dever de comunicar os familiares das vítimas feridas ou mortas pelo confronto armado,em atendimento à dignidade da pessoa humana e ao direito dos familiares de pessoas desaparecidas receberem as informações existentes sobre elas. Esse direito é fundamental e expressamente considerado como Princípio Geral no Decreto Federal 849/1993, conforme dispõe seu art. 32 quanto à

“aplicação da presente Sessão, as atividades das Altas Partes Contratantes, das Partes em conflito e das organizações humanitárias internacionais mencionadas nas Convenções e no presente Protocolo deverão estar motivadas primordialmente pelo direito que têm as famílias de conhecer a sorte de seus membros”. (grifo nosso)

O reconhecimento acerca do tema desaparecimento de pessoas, ocasionado pelo Estado, em período de guerra, é tão evidente que a legislação internacional prevê procedimentos garantidores do acesso às informações pelos familiares, tanto do desaparecimento do ente querido, quanto da notícia de seu óbito. Por isso, aqui cabe a transcrição a seguir:

“Art. 33. Tão logo quanto permitido pelas circunstâncias, no mais tardar desde o fim das hostilidades ativas, cada Parte em conflito efetuará a busca das pessoas cujo desaparecimento tenha sido noticiado por uma Parte adversa. A fim de facilitar tal busca, essa Parte adversa transmitirá todas as informações pertinentes sobre tais pessoas”.

2. Tão logo quanto permitido pelas circunstâncias e relações entre as Partes adversas, as Altas Partes Contratantes em cujo território se encontrem os restos mortais das pessoas falecidas em consequência das hostilidades, durante a ocupação ou enquanto se achavam detidas, celebrarão acordos com o propósito de:

a) facilitar aos membros das famílias dos falecidos e aos representantes dos serviços oficiais, e determinar as disposições de ordem prática para tal acesso;

c) devolução dos objetos de uso pessoal ao país de origem por solicitação desse país e ou, exceto quando esse país se oponha a isto, por solicitação do parente mais próximo. (...)” (Decreto Federal 849/1993 – grifo nosso).

Além da incorporação dos direitos acima, no sistema interamericano, o Pacto de San José da Costa Rica, ratificado pelo Brasil, complementa que vigente o respeito à família como “núcleo natural e fundamental da sociedade” e, obviamente, a “ser protegida pela sociedade e pelo Estado” (art. 17).

Além da proteção dos direitos fundamentais aplicáveis aos conflitos armados – direitos humanitários –, internacionais ou nacionais, conferida pelas Convenções de Haia e Genebra, os sistemas internacionais de proteção dos direitos humanos, global e regional, revelam outra perspectiva relacionada ao desaparecimento de pessoas, pois enfáticos na prevenção e combate do desaparecimento forçado de pessoas pelos próprios agentes de Estado, movido por interesses políticos.

O desaparecimento forçado surge, explicitamente, com a Declaração Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado aprovada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 1992, a qual inspirou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, de 1994, e a Convenção Internacional para a Proteção de Todas as Pessoas Contra o Desaparecimento Forçado, de 20 de dezembro de 2006, em vigor desde 2010, com a ratificação do vigésimo país, o Iraque. O Brasil foi o vigésimo primeiro país a ratificá-la.

4. A legislação nacional e o desaparecimento de pessoas

A tutela à integridade física remonta à Revolução Francesa, que, no calor da Renascença, voltava-se ao corpo humano e viveu a necessidade de tornar postos os direitos que proclamava fundamentais, via Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Era momento propício para debelar a então valoração da pessoa, tal qual no mundo clássico, segundo seu status libertatis, familiae ou civitatis,e reconhecer que

“a personalidade consiste no conjunto de caracteres próprios da pessoa. A personalidade não é um direito, de modo que seria errôneo afirmar que o ser humano tem direito à personalidade. A personalidade é que apoia os direitos e deveres que dela irradiam, é o objeto de direito, é o primeiro bem da pessoa, que lhe pertence como primeira utilidade, para que ela possa ser o que é, para sobreviver e se adaptar às condições do ambiente em que se encontra, servindo-lhe de critério para aferir, adquirir e ordenar outros bens”.

Mais que tudo, bradava-se por um limite do Estado, que não poderia agir como proprietário do indivíduo, embora também moderador desse direito diante do demais direitos individuais interagindo em comunidade.

Genebra, Haia e San José garantem aos brasileiros, por via constitucional, o respeito à dignidade da pessoa humana, cuja personalidade está incluída e permanece defensável após a morte. Além disso, já apontam para o respeito à família, detentora dos corpos e da defesa de sua honra, mesmo quando cadáveres. Aliás, esse compromisso democrático em nossa Constituição assegura à mesma família, “base da sociedade” (art. 226), não só a liberdade relacionada aos atos da vida civil do núcleo familiar (direitos individuais disponíveis), dispondo do destino do cadáver que lhe pertence em nome próprio, pelo direito fundamental de propriedade assegurado no art. 5.º, XXII, da Constituição Federal, a qual não encontra função social diversa daquela ocasionada pelo fornecimento de dignidade à pessoa humana, em nome individual e de forma transindividual.

Ainda, aos familiares é também publicamente garantida a legitimidade de questionar os danos morais reflexos dos direitos da personalidade do de cujus, que, ainda que extintos com a morte, são violados pelo redesaparecimento,pois desrespeitado o direito à integridade física, psíquica e moral daquele que, quando vivo, sequer foi procurado pelo Estado e, mesmo morto, e em posse dos órgãos de autopsia e segurança, foi ignorado pelo Poder Público ante a ausência de disponibilização de informações existentes no sistema de dados públicos aos familiares, pela dificuldade de acesso à justiça e segurança, tanto jurídica como pública.

“O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantido mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo”.

O direito constitucional à segurança viabiliza a fruição dos direitos fundamentais da pessoa humana, bem como os de sua personalidade, o que impede qualquer negativa de busca ativa real do desaparecido, que teve seus direitos, no mínimo, ameaçados, a começar pelo direito de convivência familiar.

Pois bem. Certos de que a Constituição Federal constitui-se fonte normativa primária, o Princípio Constitucional da Legalidade torna indispensável a atuação da Administração Pública apenas naquilo que lhe é imposto agir por força de lei, a começar pelas disposições constantes no próprio texto constitucional.

A propósito, os Princípios da Legalidade e da Publicidade preveem, sim, o enfrentamento do tema desaparecimento de pessoas pelo Estado: primeiro, porque conferem garantia social ao uso de um serviço público de segurança, de natureza universal; segundo, porque o fácil acesso às informações de uma pessoa desaparecida valida a democracia dentro do Estado de Direito, eis que comprometido com a transparência de seus atos e dados, ou seja, “o princípio da legalidade é o antídoto natural do poder monocrático ou oligárquico, pois tem como raiz a ideia de soberania popular, de exaltação da cidadania” e, mais, “a função do ato administrativo só poderá ser a de agregar à lei nível de concreção, nunca lhe assistirá instaurar originariamente qualquer cerceio a direito de terceiros”.

Não diferente dos princípios já apontados, o Princípio da Eficiência irradia seus efeitos constitucionais ao ordenamento jurídico, sendo assim, o Estado deve adotar políticas públicas aptas o suficiente para garantir os direitos fundamentais do desaparecido e daqueles que buscam notícias em todos os atos administrativos; vale considerar que assim também entende o STF, pois, ao declarar constitucional a investigação criminal a cargo do Ministério Público, assegurou que “é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos ‘poderes implícitos’, segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins dá os meios”.

Em outras palavras, a omissão do Estado na defesa dos direitos fundamentais do desaparecido e de seus familiares é inconstitucional, além de constituir ato de improbidade administrativa, pela violação dos Princípios da Administração Pública, acima expostos.

De fato, com assertividade, o direito moderno ainda necessita declarar (não decretar) os direitos inerentes à própria natureza humana – os direitos da personalidade –, dada a insistência de sua violação e, portanto, o desrespeito ao Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. Princípio, aliás, que engloba o respeito ao cadáver – representação de uma personalidade – e cuja família tem o direito de zelar, além do próprio direito de propriedade:

“Após a morte, há ao corpo do morto uma conotação de direito de propriedade sobre o mesmo pelos herdeiros, apesar de reconhecer a estes, pela ‘transferência da personalidade’, o direito de defender a memória do de cujus contra injúrias praticadas por outros”.

Basta ler o início do Código Civil brasileiro, recém-talhado em 2001 e transcrito acima, ao tratar dos direitos da personalidade.

Assim, embora o cadáver não seja pessoa, é coisa que comporta valoração especial, seja porque não admite o aviltamento à personalidade que ainda representa, seja porque é de propriedade da sua família e está fora do comércio.

Em sede de legislação nacional, cabe informar que não há Lei Federal Especial, mas o Estado de São Paulo, após recomendação da Comissão Parlamentar de Inquérito das Pessoas Desaparecidas, é pioneiro na Lei Estadual 15.292/2014, que exige a criação de um banco de dados de desaparecidos, que permanece relegado pelo mesmo Estado que não realiza o cruzamento de dados detalhado anteriormente.

Ainda assim, vige no Estado de São Paulo a Portaria 21/2014 do Delegado-Geral de Polícia, que, a pedido do MPSP/PLID, reorganizou as investigações de desaparecidos por delegacias da capital e do interior (antes tudo ficava centralizado na Capital), bem como passou a investigar, por inquérito policial, o desaparecimento dos vulneráveis crianças e doentes mentais, mas se omitiu em relação aos adolescentes, embora tivessem sido parte do acordo;[26] tanto que os considerandos da referida portaria consignam, textualmente, o Princípio da Proteção Integral da Criança e do Adolescente.

A propósito, o MPSP é conveniado à Associação Brasileira de Jurimetria, com a qual tem realizado estudos estatísticos-sociais e já tem documentado que, entre 2013 e 2015, a população mais noticiada como desaparecida envolve o jovem adulto masculino, com pico aos 15 anos de idade – vide apêndice.

Conclusão

O Estado tem seus fins somente dentro das formas e dos limites do direito e deve primar, em qualquer condição, pela dignidade da pessoa humana, o que torna essencial a efetividade da dimensão material dos direitos fundamentais. Em vista disso, o desaparecimento de pessoas, então ecoado pela omissão pública na perquirição do paradeiro do familiar do desaparecido falecido, pede do Estado uma verdadeira política pública na temática, nunca um distanciamento doloso dela.

Se a falta de investigação de desaparecimentos indiciariamente criminosos levados a conhecimento da autoridade policial já nos causava espanto,muito mais nos surpreende o redesaparecimento de pessoas, omissão que ocorre há anos, mas que foi perpetuada mesmo após informe oficial ao Estado.

A postura atual não se coaduna ao dito Estado Democrático de Direito, bradado pós-ditadura e seus desaparecimentos forçados. Ora, é a força do Estado e de suas decisões (neste caso, inconstitucionais) que impede a imediata mudança do status quo, protagonizando os desaparecimentos da democracia.Nos últimos anos, por metáfora do destino, no mesmo cemitério de Perus – Cemitério Dom Bosco –, onde se inumaram militantes da ditadura, bem como se descobriu vala clandestina com 1.049 ossadas sem identificação, estão sendo inumados os desaparecidos da democracia. Isso sem volver aos tempos do Cemitério de Vila Formosa, local, aliás, que, após uma “reurbanização ou reorganização sofreu graves alterações, provocando o ocultamento de pelo menos um corpo, o do preso político José Maria de Ferreira Araújo”.

A propósito, até hoje não nos foi respondido por que corpos de pessoas presumidas como “não reclamadas ou facilitar a repatriação dos restos mortais das pessoas falecidas” vieram a fazer parte do mesmo espaço de corpos de pessoas consideradas “indigentes”, conceitos que não se confundem, mas que também podem ter permitido confundir a sociedade por tantos anos.

Como “uma das principais tarefas do Ministério Público é buscar a efetividade do princípio da dignidade humana, sem admitir argumentos orçamentários ou se alinhar a interesses políticos, especialmente protegendo a população que vive o apartheid social”,esses fatos hão de ser solucionados, ainda que intimamente ligados ao “longo, paulatino, difícil e complexo”(como define a Professora Silvia Pimentel) processo de (re)afirmação da dignidade humana pós-violações históricas.

Fonte : IBCCRIM 

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